top of page
  • Foto do escritorKauane Lahr

Promessa de mudança

Os caminhos traçados por Maria Augusta Scopel Bohner, estudante de Design, que saiu de sua cidade natal para respirar novos ares na Ilha de Santa Catarina


Os olhos de jabuticaba se mantinham firmes nos comandos das companheiras à sua frente. Uma colocava os braços ao redor do pescoço da outra e mostrava como golpear um possível agressor. Dispostas em roda, as gurias observavam as orientações e depois as repetiam em duplas. O evento de autodefesa para mulheres foi convocado pelo Centro Acadêmico de Design da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Horas antes, havia se decidido pela criação de um comitê de autodefesa na Assembleia Geral Estudantil da UFSC. Pauta recorrente. Urgente. Os mesmos olhos de jabuticaba estavam ali presentes, levantando o cartão amarelo da votação que aprovava a criação do comitê. A luta pela própria defesa e defesa dos seus estava viva.

A dona desses olhos é Maria Augusta Scopel Bohner. Mulher. Jovem. Artista. Olhos de uma gente que vê nas tintas e pincéis uma porta de saída – ou entrada – para seu mundo. Um universo muito próprio e particular, definido pelo namorado, Gustavo Wollmann, como “uma promessa de mudança”. "Ela chega em casa com uns produtos e diz: sábado eu vou descolorir o cabelo". Ele conta que se sente motivado pela namorada a também mudar.

Os dois se conheceram num cemitério em sua Chapecó-SC, onde moravam. Um lugar calmo e silencioso, motivo pelo qual Maria e seus amigos frequentavam-no. Também gostavam de fotografar e, de acordo com eles, o local possui uma estética e lirismo diferente. Houve uma vez em que a polícia apareceu por lá. “Sei lá se era ilegal. Não entendo, sabe? Porque íamos à tarde. Mas minha mãe também não curtia muito que a gente entrasse lá”, conta Maria. A amiga, Nicole Vitorino, menciona que por ser uma cidade pequena, não havia muitas opções de passatempo, a alternativa era usar a criatividade. O grupo de amigos até se autointitulou “Os Ovidianos” em homenagem a Ovídio, poeta romano de Amores e Metamorfoses.

As metamorfoses que acompanham a vida de Maria Augusta vão muito além de poemas e poesias. Os cabelos coloridos, descoloridos, azuis, rosados, ruivos, curtos, compridos, são a “promessa de mudança” que o namorado enxerga como algo que já faz parte dela, e sempre fez – pelo menos desde que a conheceu, em 2016. As mesmas mudanças são vistas pela mãe, Maria Beatriz, como algo muito recente, “coisa de três, quatro anos atrás”. Para Maria, as suas alternâncias de visual têm uma relação intrínseca com seu gosto pela moda, e ainda mais com sua estabilidade emocional. “Eu pensava assim “ah, naquela época muita coisa boa aconteceu comigo, e eu usava o cabelo azul, então se eu pintar de azul as coisas vão dar certo”, mas obviamente não davam…”, lembra.

Maria Augusta é estudante de Design da Universidade Federal de Santa Catarina. Apesar da veia artística que já demonstrava na pré-adolescência – nos cursos de pintura que fazia com a mãe, nos desenhos que rabiscava nas carteiras da escola e que Nicole completava no dia seguinte – artes ou design não foram suas primeiras opções. De acordo com Maria Beatriz, a filha sempre quis ser médica. Maria Augusta, num desconcerto, ri e explica a confusão. “Eu disse que talvez fosse ser dermatologista quando tinha 10 anos”. Também conta que sua mãe frequentemente tecia comentários sobre a área artística não render financeiramente e insistia que um dia ainda fizesse Medicina, agora já não fala mais, pois sabe que esse tipo de comentário entristece a filha.

A escolha do curso Design se deu, como outras grandes decisões de sua vida, incentivada por um pequeno gesto. Aos 15 anos, ela e suas amigas visitavam uma feira de exposições chamada "Mundo das Profissões". Lá, a mãe de Nicole disse que ela era a "cara do design gráfico". Maria nem sabia da existência desse curso, mas começou a considerá-lo. Artes Visuais já havia sido uma possibilidade de graduação para ela, porém começou a "pesar" a falta de espaço no mercado de trabalho. "Eu sabia que não levava jeito pra ser professora – que é o estereótipo de profissão de quem cursa Artes e um emprego mais seguro nessa área".

Pisciana do dia 13 de março de 1998, nasceu numa pacata cidade do oeste catarinense – colonizada e planejada por coronéis que vieram do Rio Grande do Sul – que hoje ainda carrega as tradições gaúchas e a política coronelista. Chapecó, tem atualmente mais de 200 mil habitantes e pelas palavras dela, a cidade a sufocava. Seus pais sempre tiveram condições de lhe proporcionar viagens para conhecer outras cidades e, até mesmo, outros países. Ficar em Chapecó nunca foi uma opção para ela. Por isso, com o auxílio econômico dos pais, há dois anos se mudou para Florianópolis para estudar.

Cursar Design morando na Ilha da Magia sempre a encantou, mas alguns episódios depressivos dificultaram sua adaptação a nova cidade e a universidade. Nos corredores do Departamento uma frase estampada na caixa de energia, que fica ao pé das escadas que levam as salas do Design, por muito tempo a machucou. "O que te faz levantar da cama todos os dias?". Tinha ódio dessa frase. Porque, por muitos dias, já não tinha mais motivação alguma para se levantar, “não via graça na universidade, em nada”, conta. Apesar de reconhecer o apoio que recebeu do namorado, Maria afirma que “nenhum homem vai ser capaz de mudar algo assim, nós [mulheres] precisamos ser suficientes”.

Um assunto ainda delicado para ela, mas que espera poder falar abertamente algum dia. “Eu gostaria muito de conseguir falar sobre, principalmente porque sinto que ainda é um tabu na sociedade, e eu gostaria de ajudar de alguma forma”. Ela deseja desmistificar a vivência da depressão e quebrar este tabu usando arte como ferramenta.


Um café, por favor!


Os cabelos curtos e a mochila amarela a identificam facilmente entre as outras mesas da praça de alimentação. As mãos passeavam pelo cabelo minuto a minuto. Já não havia cabelo cobrindo os olhos e atrapalhando o enxergar ou o falar. O cabelo estava agora castanho escuro, curto. Curtinho. E as mãos seguiam passeando. Às vezes, num escorregão, saíam do cabelo e paravam no piercing da orelha direita. Os gestos insistentes e constantes se aprumavam com os olhos de jabuticaba que vagavam entre meus olhos e mãos e as mesas que nos rodeavam na cafeteria.

Um gole de café. Gestos delicados e uma voz forte e pesada. Carregada. Movida pela discordância das lembranças que a afetam. Outro gole. As reuniões de família agora já não são as mesmas. Maria – que sempre aguarda o seu momento para falar e só o faz quando requerido e em poucas palavras – discute, briga com a família por coisas que a desagradam. "Brincadeiras com as agressões [que vêm ocorrendo diante da conjuntura política nacional], piadas que eu não vejo graça".

– O que te chateia nessa vida?

– No momento, política… – a resposta vem acompanhada de um sorriso amarelo, como de quem diz que já está cansada dessa história. Os assuntos e as conversas iam e voltavam – de sua infância em respostas rápidas e objetivas para o presente condensado “Design UFSC”. Mas, afinal,

– Quem é Maria Augusta fora do Design?

Junto com a resposta, novamente um sorriso amarelo e cansado

– Eu não sei. Acho que fico muito tempo aqui dentro. Muitos trabalhos. Minha cabeça não sai daqui.

Antigamente, desenhar lhe permitia colocar seus sentimentos para o papel. Hoje suas criações são direcionadas para trabalhos acadêmicos – “produtos”. O gosto pelo desenho e pela fotografia a acompanha desde cedo. Nos lápis uma possibilidade de criar. Na fotografia, de congelar um momento. “Não me preocupo tanto se a foto vai ficar boa esteticamente, é mais para lembrar de que aquele momento existiu”. O namorado Gustavo acredita que Maria não seja somente uma ótima fotógrafa ou uma ótima ilustradora. “Acho que, na verdade, ela é uma ótima pessoa e isso se projeta para as coisas que ela faz”.

Ao mesmo tempo em que não se vê fora do design, é difícil para Maria se entender como designer. “Como é pra você…? Se ver como jornalista?” Ali entendi sua resposta – que veio em forma de interrogação. É difícil se enxergar uma coisa. É difícil se colocar numa caixinha. “Eu acho que eu só sou a guria que tira umas fotos e faz uns desenhos”, afirma, citando a frase que fica em sua bio no Instagram há alguns anos.

As jabuticabas janelas da alma ainda vagam, agora dispersas na busca de um “quem sou eu?”. Na busca de uma forma de desenhar e criar para tirar os ideais e lutas do plano das ideias. Maria Augusta busca o equilíbrio entre ser designer e ser artista. Os pincéis traçam o caminho.


 

Reportagem: Kauane Lahr

Edição: Melina Ayres

Foto: Aghata Schwarz

bottom of page