Corpos sob suspeita
- Kauane Lahr
- 15 de jan. de 2019
- 6 min de leitura
Atualizado: 27 de jul. de 2020
As práticas esportivas estão implícita ou explicitamente condicionadas pelos estereótipos de gênero
“Você joga como mulherzinha!”, “Sapatão!”, “Boiola!”, “Você tá ficando muito masculina!”, ''Vôlei é esporte de mulherzinha, só viado, bixa joga!'', "Mulherzinha! Não aguenta as chegada dura!". Imagine, se você, ou pessoas próximas a você, tivessem que ouvir essas frases toda vez que fossem trabalhar ou fazer uma atividade da qual gostam? Diversos atletas passam por isso, sejam eles profissionais ou amadores, afetando suas vidas para muito além dos tatames, quadras, ringues, piscinas ou campos.
O teor pejorativo exposto nas frases acima revela um universo esportivo masculinizado. Alison Mendonça, atleta profissional de judô, se assumiu gay em 2014 e conta que os comentários desagradáveis costumam vir de pessoas que não tão próximas a ele. Certa vez, apareceu em uma foto com um amigo em que um casal gay se beijava ao fundo. Os técnicos das outras equipes comentavam entre si “Tinha que ser aluno do Adenildo [técnico de Alison]”, apesar das situações vivenciadas, Alison afirma “Nunca sofri por isso, mas já me ofendi. Porque sempre tive essa postura impositiva. Gosto de cutucar a ferida e desconstruir preconceitos”.
Ser chamada de “machorra” também fez parte do cotidiano esportivo de Francielle Cecília, ex-atleta profissional de Judô. O julgamento muitas vezes vinha associado ao fato de não estar maquiada ou arrumada, mas muitas outras vezes simplesmente por lutar judô. Além dos comentários externos, a atleta já ouviu dos colegas de esporte que judocas juntas “colam velcro”, forma comumente usada para tratar a homossexualidade.
Rafael Polidoro, ex-jogador profissional de vôlei, sempre ouviu que ia jogar esporte de “bichinha”. Para ele, “provar” ser heterossexual sempre foi dispensável, mas muitos de seus colegas atletas sentem necessidade de se esquivar desses estereótipos, reforçando sua masculinidade. Já no caso de Alison, que mesmo não se afetando tanto com o preconceito velado que sofria, sentia que sua sexualidade era colocada a frente de seu desempenho no esporte. “Acredito que esse respeito que eu consegui conquistar, só acontece porque tenho meus títulos”.
Os estereótipos são simplificações do mundo e das pessoas, utilizadas para facilitar a compreensão sobre elas que, no caso do esporte, reduz os atletas a uma coisa única. Estes, ficam “reféns” das diversas “suspeitas” que pairam sobre seus corpos. Suspeitam que sua sexualidade seja outra, que seu gênero seja outro, que seu desempenho está ou não associado ao seu sexo. Há uma produção cultural e social dos papéis de gênero – o que é de homem e o que é de mulher – e dentro do esporte esses papéis se intensificam e a reprodução dessas ideias acontece mais intensamente. Eric Seger, Educador Físico e Mestre em Educação, explica que a expectativa social geral é que os meninos devem ser mais aptos fisicamente, correr mais e ser mais ativos. Já as meninas são mais quietas. “E isso tem um efeito de treinamento, desde bebê”.
Para a maioria das crianças o primeiro contato com o universo esportivo acontece na escola. Nas aulas de educação física, o futebol é para os meninos, o vôlei é para as meninas. Os times devem ser separados, já que meninas não conseguem jogar com os meninos. Esse discurso cresce com as crianças, se consolida na adolescência e demora para ser – quando é – desconstruído na vida adulta. Para Ana Paula Bertazzi, professora de educação física e ex-atleta de atletismo, essas divisões de gênero estão sempre presentes na vida das crianças. “Eu percebo que desde a pré-escola já existe essa discriminação. Nas brincadeiras ou até insultando, eles já dizem que meninas são mais fracas que meninos, que elas não tem velocidade, não tem força”.
Pedro Corrêa, relata com dificuldade que no ensino fundamental seu professor colocava os meninos para jogar futebol e as meninas, queimada. Ele nunca gostou de jogar futebol, então perguntou se poderia jogar queimada. Naquele momento o docente retirou o canivete do bolso, olhou para ele e perguntou: “quer cortar? [órgão sexual]”. Hoje, Pedro tem 19 anos e não se sente à vontade para praticar nenhum esporte. Também nunca chegou a contar essa história para seus pais.
Enquanto estava na graduação, Ana nunca discutiu as relações entre gêneros e práticas esportivas nas disciplinas do curso. Em suas aulas, ela conta que faz grupos mistos e demonstra que cada um pode desenvolver diferentes habilidades num mesmo esporte, ser mais veloz, habilidoso, ou mais técnico, independe do gênero.
Contra a “natureza” e contra a Lei
A consciência de igualdade de gênero nos espaços esportivos é recente entre os profissionais da área. A regulação das práticas esportivas é construída em sociedade e firmada pelo Estado. Durante quase quarenta anos, vigorou o Decreto-Lei 3.199, de 14 de Abril de 1941, que estabelecia as bases de organização dos desportos em todo o país e, em seu artigo 54, impedia que as mulheres praticassem esportes “incompatíveis com as condições de sua natureza”.
Duas décadas depois, o Conselho Nacional de Desportos (CND) – citado pelo artigo 54, pela deliberação Nº 7 de 1965, ainda reafirmava que as mulheres poderiam praticar esporte de acordo com as condições estabelecidas pelas entidades internacionais responsáveis por cada desporto. A deliberação também proibia que mulheres praticassem lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de praia e salão, pólo e pólo-aquático, rugby, halterofilismo e baseball.
Essa norma foi revogada somente em 1979 pela Deliberação Nº 10/1979, entretanto a prática dos desportos ainda permanecia condicionada às decisões das entidades responsáveis. Hoje, no site do senado o Decreto-Lei 3.199/41 consta como “norma revogada expressamente”, ou seja, todo o decreto foi revogado, não apenas alguns artigos. O Conselho Nacional dos Desportos foi extinto em 1993 e o órgão correspondente em atividade atualmente, é o Conselho Nacional do Esporte do Ministério do Esporte.
O impedimento por lei da participação de mulheres em esportes chamados “de contato” foi um dos motivos que contribuiu para que elas entrassem mais tarde nas competições de boxe por exemplo, pois teve uma resistência ainda maior que as outras modalidades, como judô e futebol. “O soco é uma questão de impacto. Não é só o apanhar, mas o bater. A gente não espera isso de uma mulher”, pontua Isabela Berté, Historiadora e Mestra em Ciências do Movimento Humano. O primeiro campeonato de pugilismo disputado por mulheres ocorreu em 2001.
Nas entrevistas que Isabela realizou para sua tese de Mestrado, muitas atletas relataram que os treinos de boxe eram diferenciados para homens e mulheres. Todos os homens treinavam de acordo com os níveis. Já as mulheres treinavam umas com as outras, mesmo que uma estivesse avançada no esporte e as outras tivessem chegado naquele dia na academia. Essa diferença de tratamento com a “desculpa da diferença fisiológica” entre homens e mulheres é o que incomoda Eric Seger, educador físico, que não consegue mais se inserir no esporte. “Eu sou muito sensível a esse tipo de injustiça. E até hoje eu não consegui encontrar um ambiente esportivo em que eu me sentisse confortável”.
A inserção tardia das mulheres nos esportes contribuiu significativamente para que as discriminações acontecessem e, apesar dos avanços, Ana Bertazzi, a professora, acredita que a discriminação nos esportes ainda é muito acentuada, “não que seja impossível mas é difícil ser abolido totalmente”. Para Isabela Berté, o avanço do feminismo – movimento que sustenta a igualdade política, social e econômica de ambos os sexos– tem contribuído para que cada vez mais mulheres entrem nos esportes.
Sejam nas lutas, nas artes marciais, ou em qualquer outro esporte, a prática da atividade física está diretamente associada à saúde e à beleza, à construção de um corpo ideal. Francielle Cecília, a judoca, sempre teve “cisma” com seus ombros largos, culturalmente vistos como do corpo masculino. Quando chegou na fase dos “namoradinhos”, começou a “matar” flexão – exercício que a deixava “forte, bruta” –. Quando seu treinador virava de costas, ela não fazia. Deixava, também, de consumir alimentos que aumentavam sua massa muscular.
Apesar do corpo de Ana Bertazzi, não ficar tão musculoso já que o atletismo não o exigir, os braços maiores também não à agradavam, principalmente por ouvir comentários negativos de homens e mulheres. Ainda lembra que já conheceu muitas pessoas que acabaram desistindo de malhar e trabalhar sua potencialidade muscular ou até mesmo de praticar o esporte, por medo de deixar de ser “feminina” e não corresponder às expectativas da família e sociedade.
Reportagem: Jaqueline Padilha e Kauane Lahr
Edição: Melina Ayres

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